sexta-feira, 27 de maio de 2011

Ponte de Lima


"Ponte de Lima - Terra Rica da Humanidade"

Texto de Isabel Novais Machado
          Maria vivia os seus 24 anos, quando procurava desenfreadamente um emprego na área em que se havia profissionalizado. Inscrevera-se para um programa de estágios internacionais, acabando por receber como resposta final a sua não colocação em território desconhecido e incerto, que tanto desejara. Foi ao acordar dois dias depois do desmoronar da continuidade do seu sonho internacional, que recebeu o telefonema de uma colega. Foi-lhe indicada uma vaga para emprego, numa empresa de publicidade em Ponte de Lima.
            Existem agências de publicidade em Ponte de Lima? Foi o seu primeiro e inevitável pensamento. Um pouco desconfiada, apressou-se a pesquisar os contactos da empresa, acabando por agendar uma entrevista para o próprio dia.
            A empresa era ampla, de cores fortes e com um portfolio variado, que se opunha a uma fraca concorrência. Após um primeiro impacto e apreciação mutuamente positiva, Maria foi admitida à experiência por uns dias; dias estes que se foram prolongando por semanas, meses e anos.
            Mas nada indicaria tamanha extensão cronológica, visto que foi assombrada pela fatalidade de um pensamento assustador no primeiro dia que calçou os sapatos da vila: “Isto é uma vila fantasma, não aguento aqui nem uma semana” - pensou precipitadamente.
            A vila era-lhe familiar desde que se lembra de correr em volta de floreiras de casas senhoriais, quando brincava às escondidas com primos e primos e primos dos primos dos primos.
            Lá tivera muitos almoços, jantares, festas e galas, não esquecendo as altas expectativas anualmente correspondidas, sempre que o seu cérebro galanteava as Feiras Novas. Uma sequência de cinco dias, que correspondiam a um multiplicar desmedido da sua rede social, estendendo-se por Lisboa, Porto, Braga, Viana do Castelo e afins.
            Inicialmente resumia-se a viras, carrinhos de choque e toda uma panóplia de diversões e luzes e sons inquietantes, pães com chouriço e espectáculos pontuais, de danças cromáticas que transformavam os céus da sua inocência, numa experiência desigual.
            Com o passar dos anos, foi-se tornando em viras e mais viras e mais viras e cantares ao desafio, encontros e desencontros, vinho à pressão, danças rejuvenescedoras e nasceres do dia.
            Para si, Ponte de Lima, sempre fora sinónimo de vida, alegria e agitação.
            Mas agora, ainda no primeiro quarto de século da sua existência, foi ali parar por motivos profissionais, em meados de Abril. Não era Natal, nem era Verão, nem eram as Feiras Novas.
            O sol rasgava o céu azul ainda tímido e aquecia-lhe o rosto, coberto por uns grandes óculos de sol defensivos, que lhe protegiam o olhar explorador.
            Tinha duas horas de almoço. Foi assim que aprendeu a respeitar a relatividade do tempo.
            Dirigia-se ao centro histórico num misto de saudade enfatizada, com uma curiosidade virgem. Passou a estátua da célebre D. Teresa, que estendia o braço segurando imponente o foral que fizera daquele lugar uma vila, sendo poucos passos depois, o momento em que Maria entra num eco de solidão, que se aprofundou a cada passo, a cada rua, a cada olhar em volta, a cada percepção de que aquele não era o sítio que julgara conhecer.
            Foi aqui que pensou em fugir, que sentiu que não aguentaria em si aquele ritmo inerte.
            Com vida para além de si, nas ruas via apenas alguns pássaros alcoviteiros, que se escondiam de janela em janela, como quem espreita de soslaio a foragida.    Nas ruas de dois metros de largura que percorria, não se cruzava com vivalma, apenas com pedras ancestrais, que contavam num silêncio gélido, as pessoas que por ali haviam passado.
            Ourivesarias repetiam-se, todas diferentes e todas iguais, sorriam para as ruas com o ouro que as preenchia, enquanto as portas cerravam os seus dentes e braços, igualmente desconfiadas.
            Na sequência destas ruas, surgiam outras perpendiculares e oblíquas, igualmente vagas, igualmente frias, ainda mais estreitas e sombrias.
            Por momentos, o seu batimento cardíaco é retomado ao visualizar um conjunto de objectos e mercadorias num passeio. Haveria com certeza vida por trás de tudo aquilo. Retomou o passo firme, mas rápido constatou: não era mais que um oásis. Era uma drogaria. Deserta, cerrada, parada no espaço e no tempo. Atulhada de produtos do século XX, alguns colocados no exterior, expostos, indefesos, abandonados, ingénuos.
            Na porta tinha um horário que informava encerrado para almoço. Das 12h30 às 14h30. Só então Maria percebeu a aridez das ruas. Estava tudo encerrado para almoço. Que imensa letargia do comércio tradicional.
            Desconcertada, ouve os gritos de adoração ao tempo, arriscados pelos sinos da igreja matriz. As badaladas transportavam mais que som, mais que vida, traziam também um odor intrigante, diferente, convidativo, quente, salgado... Começava a tornar-se irresistível a cada passo, acabando por indicar como uma seta olfactiva, a porta entreaberta de uma torre milenar. Era um restaurante. Aberto. Vivo. Com gente. Com calor, cheiros, diárias, cadeiras, mesas e toalhas. Os seus pensamentos foram assim consolados. Havia vida na vila.
            Aqui conheceu a Dona Rosinha e a Dona Filomena. Cunhadas há mais de 20 anos, movimentavam-se na cozinha aberta, como quem dançava uma valsa gastronómica, com alguns passos de bailado russo desinfectante.
            As notícias políticas e curiosas saltavam de imagem em imagem, acabando por surpreender a mesa, primeiro com uma sopa de indescritível paladar, seguida logo depois de um conjunto de travessas de barro regionais, que vestiam agora as roupas daquele odor mágico e atraente sentido lá fora. Era vitela assada em forno de lenha, era arroz branco, era legumes frescos, era batatas caseiras e rosadas, era sorrisos e vozes estridentes e risadinhas frenéticas a intercalar cantares populares.
Pessoas entravam e saíam. Uns de fato de gosto duvidoso a falarem atabalhoadamente ao telefone, outros de bengala e chapéu, com mãos grossas e calejadas que cumprimentavam todos os presentes com aparente resmunguice. Era o Sr. Joaquim e a sua bengala feminina vital, a Dona Manuela. Andavam desencontrados pelas suas corcundas díspares, vestindo ambos as mesmas rugas cinzentas, que contavam a história de uma limitação geográfica forçada pela lavoura, que os havia domesticado muito antes de terem aprendido a sonhar. Mas por baixo dos sobrolhos reprimidos, pressentia-se a honra, a dignidade, o empenho e o orgulho pela partilha de uma integridade sempre presente e cada vez mais escassa numa sociedade de relógios e inovações.
            Mais complacente, Maria abandonou a torre com o sabor quente do café nos lábios. As pessoas pareciam sair das tocas e encher as ruas com passos bordados. As pessoas olhavam nos olhos umas das outras, paravam umas para cumprimentar outras, enquanto outras acenavam mesmo não conhecendo.
            Um novo espírito inundava a vila. A proximidade e o humanismo tornavam-se marcos impressionantes ao virar de cada esquina. As pedras que ladeavam as ruas permaneciam frias e passadas, mas a calçada aquecia-se com passos inconstantes e surpreendentes.
            Aquela não era afinal uma vila fantasma. Com o tempo percebera-o.
            Ao fim de uns meses, estacionava o carro ensonada e mesmo antes de acordar o seu animal criativo, já lhe acenara sorridente o Sr. Manuel da mercearia, o Sr. João do talho, o Sr. André do Restaurante, a Dona Alzira do café e o Sr. Sérgio do Quiosque. Foi numa dessas manhãs, de acenos quentes e sorrisos acolhedores, que ficou subitamente claro o encanto daquela vila, daquele pedaço de terra histórica e intimista, daquelas coordenadas tão próximas da sua residência e tão distantes da sua realidade até então. Uma grande aldeia, onde tudo é família, tudo é estória, tudo é sabido, nada é esquecido e tudo é falado.
            Uma vila de encantar que espelha vivências. Em torres, igrejas e estátuas. Em pessoas rudes, acanhadas e também em línguas desdobradas. Em cães estendidos ao sol e invasões de turistas que se multiplicam com a ascendência da época. Na Feira do Cavalo, na Feira do Vinho Verde, na Feira da Caça, na Feira do Artesanato, na Vaca das Cordas, nas Feiras Novas e na sempre surpreendente e absurda Feira Quinzenal em que o povo engole a vila.
            É o rio Lima e os kayaks coloridos, os montes verdes e as bicicletas na eco via a ir com a corrente.
            É o Sr. Manuel, o Sr. João, o Sr. André, o Sr. Sérgio, o Sr. Joaquim e a Dona Alzira, a Dona Rosinha, a Dona Filomena e a Dona Luísa.
            É o chafariz, as torres, as igrejas e a ponte medieval.
            É a vila. É a vila viva de Ponte de Lima. É terra rica da humanidade.


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